March 15, 2017

Quando o bullying mata

Hoje trago-vos um assunto muito delicado. Embora este blog seja maioritariamente sobre viagens e temas relativos como gastronomia ou alojamento, gosto de partilhar convosco leituras, eventos que participei que merecem destaque e até conversar sobre assuntos sérios que se passam no seio da sociedade. É por isso que tenho ali aquela etiqueta "Partilhar", porque partilhar é o que faço cada vez que clico do botão "publicar" mas esta etiqueta serve mais como um "aleatório". 

Na semana passada apetecia-me passar a tarde em casa a ver filmes, ao tempo que não fazia esta actividade que tanto gosto! Mas não sabia bem o que assistir (não tenho televisão nem netflix) então resolvi socorrer-me deste vídeo da Dora do Books & Movies, pois tem umas sugestões que vão de encontro aos meus gostos cinematográficos. Da lista, o título "A Girl Like Her" saltou-me à vista e fui de imediato ver o trailer. Percebi que era um filme pesado sobre o Bullying, então vi primeiro o Zootopia para relaxar e depois assisti o "A Girl Like Her". 

Este filme conta a história típica dos liceus dos Estados Unidos em que uma das miúdas mais populares (neste caso a Avery) passa a vida a chatear uma "presa" (a Jessica). Mas chatear é uma palavra bonitinha para demonstrar o que se passou ao longo daquele ano. Avery enviava sms e emails à Jessica todos os dias a dizer-lhe o quanto ela era feia, as roupas que usara naquele dia eram horríveis, a chamar-lhe de puta e a dizer-lhe para ela morrer pois era o melhor para ela e para todos. Além disso tratava-a como lixo na escola, fazia piadinhas, chegando aos extremos de empurra-la e ameaça-la. 

Brian, o melhor e único amigo de Jessica, numa tentativa de ajudar a amiga, propôs filmar o que estava a passar durante o período de aulas e as mensagens de ódio que recebia e até arranjou uma mini câmara para Jessica usar como pin na blusa. 
Assim sendo, todo o filme parece um documentário caseiro daqueles com qualidade mediana, o que confere mais realidade ao filme. Sentimo-nos mais perto com a história, como se nada daquilo fosse premeditado, sem guiões ou actores. Pura e simplesmente a vida real. Já agora os meus parabéns pela brilhante prestação da Avery pela talentosa Hunter King!

Chega um ponto que Jessica está tão farta que decide por termo à sua própria vida. Não vou vos contar se morre no final ou não, só queria que vocês considerassem a hipótese de ver este filme, que tocou-me no coração de uma forma tão brutal e crua que desatei a chorar rios. Vou-vos explicar porquê.


A MINHA HISTÓRIA
Antes de mais, não malta, não sofri de bullying. Ou pelo menos que me tivesse afectado de uma maneira grave, ao ponto de chorar ou ficar deprimida. Todos nós temos episódios na nossa infância/adolescência em que fomos gozados pelos nossos (pseudo) amigos, quer pela roupa fora da moda, ou porque perdemos o jogo, ou porque nos pregam partidas (quem foi à caça de gambozinos que se acuse!).

Em 1990 estava a entrar para o 1º ano, estava radiante. Rapidamente fiquei muito amiga de uma colega chamada Clara. Partilhávamos a mesma carteira, passávamos os intervalos juntas (com outras meninas da turma também) e todos os fins-de-semana íamos dormir à casa uma da outra. A minha mãe chegou a verbalizar "Então vocês não querem lanchar? Alimentam-se de amor", nunca mais me esqueço. Juntas passávamos tardes infinitas a brincar às barbies, a ir para a praia ou piscina, a brincar na rua com os meus primos, a tocar campainhas dos vizinhos e fugir, a telefonar a números aleatórios e inventar histórias só para rir à gargalhada da reacção das pessoas. Enfim, não podia ter ao meu lado a melhor companheira para TUDO. A Clara era acima de tudo a amigalhaça, sempre pronta para dar um beijinho e abraço quando estavas em baixo, a colega inteligente que te dava explicações quando estavas à rasca com a matéria. Era de uma simpatia genuína e cheguei muitas vezes a pensar que adorava ser como ela.

Tudo corria às mil maravilhas não fossem as constantes situações de bullying que a Clara sofria. Na altura nem se utilizava essa palavra para definir as situações de gozo que esta menina era alvo. Não havia um só recreio que os rapazes mais durões da turma e outros de outras turmas não a chamassem de gorda. Ela tentava não dar ouvidos mas via-se na cara que ficava ressentida. Eu era a Madre Teresa de Loulé e defendia a Clara com unhas e dentes, na altura já era uma maria rapaz com voz grossa e não permitia jamais que insultassem a minha amiga. Logo de seguida ia ter com ela para lhe dizer "Não ligues, não és gorda" E não era. Digamos que era a mais fofinha da turma mas gorda não era. 


Apanhei algumas vezes a Clara a chorar escondida mas ela tentava esconder sempre os seus sentimentos. Ela era daquelas garotas que guardavam tudo para si.
Para ajudar à festa deixamos de brincar tanto na rua com os meus primos pois passavam a vida a chamar-lhe "Clara de ovo". Parece algo inofensivo mas gozarem com o nosso nome naquela altura não era nada agradável, era um insulto enorme à nossa pessoa. 
Na altura não tinha noção mas a auto-estima da Clara era bastante baixa, ela não gostava dela própria e os outros miúdos passarem a vida a gozar com ela não ajudava em nada. 

No 8º ano quando a Clarinha foi estudar para Quarteira o nosso contacto ficou mais estrito. Aliás, a partir do 6º ano começamos a distanciar-nos mais. Não há explicação, as pessoas crescem e começamos a fazer novos amigos e acontece uma separação natural. 
Ainda assim, nas raras situações que via a Clara passávamos imenso tempo a falar e comentava sempre como ela como se tornara uma gaja toda gira e boa :) 

Eram 2 horas da manhã, Junho de 2007. Estava na missão de terminar a tese, o telefone toca. 
-"Tou Fedra"
- "Já viste as notícias no jornal Marta?" (com uma voz muito estranha)
- "Hmmm não. Só vejo a tese à frente" 
- "A Clarinha suicidou-se". 

Caiu-me tudo. Era um pesadelo? Com certeza deveria ter adormecido ao analisar os dados dos inquéritos e agora estava a ter um sonho muiiiiito mau. Belisquei-me. Era real. 
O que leva uma pessoa com 22 anos a pegar na caçadeira do pai e dar um tiro a ela própria pela boca? Só tenho uma palavra para isto: desespero. 
Os próximos anos foram de culpabilização. A culpa dela se matar era minha porque nunca mais falamos como deve de ser e deveria ter olhado aos sinais. Uma semana antes de receber esta chamada tinha encontrado a Clarinha no autocarro em Faro e deparei-me com uma Clara extremamente magra e um bocado estranha. Quando lhe pedi o número de telefone para tomarmos um café disse-me que tinha perdido o telemóvel. Claramente a sua intenção era afastar-me dela mas na altura nem me apercebi. 

De culpabilização passei para a fase, do que chamam em Psicologia, de mecanismos de defesa, em que fiz a minha mente acreditar que ela continua viva. E assim permaneço até os dias de hoje. Por vezes sonho com a Clara, são sempre sonhos bonitos, ela está sempre alegre e de sorriso estampado na cara. Na minha cabeça a Clarinha está viva, eu é que não a vejo. 

Esta foi a tragédia da minha vida, até ao momento. Tive dificuldades extremas em lidar com a situação. Hoje em dia cheguei ao ponto de paz comigo própria e, por vezes, dou por mim a sorrir quando me recordo de algum momento vivido com ela. 


Percebem agora porque é que este filme tocou-me na alma?
Ao assisti-lo é como se tivesse a ver a história da Jessica na da Clarinha, que embora bem diferentes, lixaram-lhes a cabeça toda ao ponto de pensarem dar um termito nas suas curtas vidas. 
Oiçam com atenção, ninguém mas mesmo ninguém tem esse direito! De fazer-nos sentir tão mal ao ponto de deixarmos ter vontade de continuar a viver. Ninguém. 
E este não é um assunto que diz respeito apenas à vítima e buller, é um assunto que diz respeito a toda a comunidade, por isso estejam atentos: não deixem situações destas se prolongarem pois poderão se arrepender mais tarde de não ter movido uma palha para ajudar... aí já será tarde demais. Há muitas Claras por esse Mundo fora, acreditem.  

Vejam o filme e reflictam. O que acham do bullying? Sofreram-no na pele? Gostava de saber as vossas opiniões. 

Ps - Senti um súbito alivio ao escrever este texto. Obrigada por estarem desse lado a ler :) 

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  1. Oh Marta <3 um mega-abraço, apertado e cheio de amor. Estas coisas tocam-me sempre - não só porque tive uma adolescência sofrível à conta do bullying (eu era mais tipo Clara, mas felizmente consegui sair desse buraco negro) mas também porque conheço a sensação de "eu podia ter feito mais". A questão é que não podias, mesmo. As amizades evoluem, a vida acontece, e não podemos adivinhar tudo o que se passa à nossa volta. Estes assuntos são sempre complicados, e o nosso cérebro é mais complicado ainda...bem, não sei. Só te queria deixar um abraço <3 e tenho que ver esse filme! *

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    1. Obrigada pelo teu testemunho Joaninha! Quando finalmente percebi que afinal não podia mesmo ter feito nada senti uma liberdade tão grande! Tenho a agradecer imenso aos meus amigos que sempre estiveram lá a ouvir me, a chorar, a desabafar.
      A adolescência já é uma altura conturbada quanto mais a levar com o bullying em cima, és forte por teres saído dessa!

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  2. Querida Marta... não tenho palavras para ti.

    Estou a chorar só de ler o teu texto. O bullying é uma palavra que me diz muito e me toca profundamente. A tua história fez-me arrepiar, chorar e relembrar muitas coisas.

    Um abraço tão apertado quanto o aperto no coração que tenho sempre que leio posts assim.. do coração. <3

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    1. Não queria fazer-te chorar Mariana, desculpa =/
      Este texto demorou meia hora a ser escrito, saiu-me da alma.
      Não estou a par do que se passou contigo mas se há traumas a afectarem te aconselho a procurares ajuda profissional brevemente, estas são situações que guardamos dentro de nós mesmo de forma inconsciente e que nos corroem a alma para todo o sempre. O melhor é cortar pela raiz.

      Beijoca grande minha linda*

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  3. Minha linda!! A clara era um poço de alegria!! Ainda me lembro de andar pela avenida de Quarteira a fingir que éramos macacos! Um beijinho muito grande para ti! Que, pelo menos para mim, sempre foste fonte de apoio. Ainda me lembro de estará cheia de problemas e apesar de não te ver há muito tempo te ligar a dizer que naobestava bem. E a nossa conversa acabava sempre contigo a pôr o meu astral lá em cima!! Onde seja que a Clara esteja, está com certeza muito orgulhosa de ti!! Beijinhos!
    Tocha!

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    1. Tens memoria de elefante Tocha! Lembro me dessa dos macacos, era uma animação quando estávamos rodeadas pela Clarinha.
      Obrigada pelas palavras bonitas, adoro te amiga!

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  4. Olha nem sei que diga... brutal
    Não sei quando vou ver o filme que falas (tenho de estar bem psicologicamente para essas cargas emocionais) mas hei-de ver.
    Até porque tenho sempre de estar atenta aos sinais (tenho um filho adulto e outro adolescente).
    Até já
    Marta
    https://pitinhosdamarta.blogspot.pt/

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    1. Tens de estar preparada, é um filme com uma carga bem pesada.

      Acho que um dia, se tiver filhos, vou andar super alerta. Eu via a Clara, sempre que os pais perguntavam como foi o dia ela nunca mencionava que tiveram a gozar com ela na escola... é muito difícil estar a par quando está a acontecer bullying com os nossos filhos, porque os amigos omitem (como foi o meu caso) para não causar mais dor.

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    2. Nesse aspecto tenho o mais velho (21) que toma conta do outro (13).
      Têm cumplicidade para isso.
      Mas ando sempre atenta.
      De qualquer das maneiras nem sempre é possível estar em cima e sim eles escondem tanta coisa.
      É fácil falar mas acho que não te devias culpar... infelizmente quando o desespero chega não há volta a dar
      beijinho
      https://pitinhosdamarta.blogspot.pt/

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  5. Já vi um filme na FoxLife desse género e tudo se resume a uma miúda que vai ao baile de finalistas com o namorado e combinam perder a virgindade juntos, nessa noite. Mais tarde a rapariga não se sente preparada e vai embora. O namorado entende, leva-a a casa mas volta para a festa. Já não me recordo porque motivo, ele deixa o telemóvel em algum lado. Ela, como uma espécie de compensação, envia-lhe uma foto sua sem roupa. A mãe da rapariga, sua inimiga por competição, na equipa de desporto, tem acesso ao telemóvel do rapaz e decide enviar para toda a gente. No dia seguinte, ela é gozada por toda a gente na escola. Sofre horrores, durante vários dias, até que decide suicidar-se também.

    É lamentável que as pessoas não percebam como podem magoar os outros, até ao ponto de exaustão que as leva a tirar a sua própria vida. É horrível.

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  6. Fiquei com imensa vontade de ver este filme. E lamento imenso pelo que aconteceu com a tua amiga, devia estar num sofrimento enorme.
    Quando era mais nova também cheguei a sofrer desse bullying, não a um nível tão violento que me fizesse querer tirar a minha própria vida, mas numa extensão de tal modo grave que estive quase para mudar de escola, por não conseguir aguentar mais.
    Acho que devia de haver uma espécie de sensibilização entre a brincadeira parva de amigos que estão na idade de serem parvos, e as crianças com maldade que sabem que estão a magoar e *querem* continuar. Cada vez mais se vê casos de bullying, e embora não signifique não tenham existido antes, porque sempre existiram, mas acho que em certos casos, e sem querer generalizar, estão a ficar mais violentos.

    Apesar de ser um assunto triste, gostei muito que tivesses falado sobre ele. Vou definitivamente ver o filme, e fico feliz por teres ficado mais aliviada depois de o escreveres :)
    Beijinhos!

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  7. Não sei mesmo o que dizer-te depois deste bonito e emocionante desabafo! Não tem mal nenhum pensares que ela está contigo pois estará mesmo *
    Também eu cheguei a sofrer de bullying mas não a este ponto mas é bom que este teu desabafo chegue a mais pessoas, para demonstrar que por vezes a vida na escola não é tão cor de rosa como pintam!

    Fizeste muitíssimo bem em escrever, Parabéns pela força! *

    Beijocas,
    ANDA DAÍ!

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  8. Sem palavras.. recordo a tantas vezes .. tantas..
    Se toco numa mesa de matraquilhos então... enfim são coisas que se sentem e não sei explicar :( compreendo quando dizes se tivesse lá...pensei tanto nisso também.. enfim beijo grande

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  9. Eu lembro-me que quando andava no 5º e no 6º ano, havia uma rapaz na turma com quem algumas pessoas gozavam um bocado, especialmente nas aulas de educação física. Mas ele defendia-se bem, e nunca ligou grande coisa para o que lhe diziam. Nunca assisti a um caso extremo, nem conheço histórias assim (tirando esta que agora partilhas connosco - deve ter requerido coragem Martinha! Um abraço!). Mas, no fundo, acho que depende muito da pessoa. Há quem tenha força para ultrapassar, há quem simplesmente não tenha... Somos todos diferentes, não é? E exactamente por isso, devemos ter sempre uma palavra simpática a dizer aos outros, mesmo aos desconhecidos na rua, no café, no supermercado. Se alguém já estiver saturado de receber críticas, por exemplo, um simples encontrão de um desconhecido na rua, sem pedido de desculpas, pode fazer transbordar tudo.

    Talvez veja esse filme. Já vi alguns do género, mas confesso que eram um bocado mal feitos e não senti nenhuma empatia pelas vítimas. Se este for diferente, preciso de estar num estado de espírito apropriado para o ver.

    Mundo Indefinido

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  10. Lembro do dia que ela partiu como se fosse hoje e foi no dia 3 de Junho de 2007 uma data que está ligada à várias acontecimentos na minha vida e ficou mais marcado com a partida dela. Ainda hoje recordo de tudo e durante muito tempo não acreditei que ela tivesse partido. Hoje estou em paz e acredito que ela também. 10 anos fazem este ano e parece que foi ontem.
    Fica em paz.
    Bjinhos

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  11. Em primeiro lugar, as minhas condolências pela tua amiga. É muito triste quando se acaba assim uma vida. Ontem acabei de ver a primeira temporada (sinceramente não sei se haverá mais porque funciona bem mesmo se acabar por ali) de 13 reasons why, uma série sobre como o bullying pode levar ao suicídio. Está muito bem feita e embora possa ser um pouco pesada vale toda a pena ver.

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Grata por comentares, adoro saber o que passa pela tua mente.

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